Campos Gerais

Uma entrevista melhor

Jornalista deve aproveitar as oportunidades. Uma pauta não deu certo, mas o santo padroeiro dos jornalistas, João do Rio, dá uma ajudinha. Fui entrevistar um ex-prefeito da cidade de Piraí do Sul para falar sobre a história do integralismo. Mas ele não pode conceder a entrevista, pois estava em outra cidade. Assim, fui cabisbaixo até a casa da minha namorada, chegando lá converso com meus sogros. Depois de alguns minutos de conversa, minha sogra fala: “mas e o Dico? Já falou com ele?”. Respondo que não.

Ela diz que ele pode saber do assunto. Como guarda vários artefatos históricos, além da memória da cidade. Meu sogro prontamente se oferece para me levar até lá, e eu aceito. Vamos de carro, chegamos na esquina da Igreja Matriz, e saímos do carro e o sogro bate palma. Depois de alguns minutos sai da porta, um senhor de cabelos brancos e diz:

-Opa, Hélio, tudo bem?.

Meu sogro responde:

-Olá, Dico, tudo bem? Então, você poderia me fazer um favor? O meu genro precisa pesquisar sobre um assunto e pensamos que você pode ajudar”. Dico responde que sim. Ele vai buscar a chave do portão de grades marrons. Abre. E me convida à entrar. Pergunta do que eu preciso, respondo se ele sabe alguma coisa sobre o movimento integralista.

Ele franze as sobrancelhas brancas e diz:

– Venha comigo! – Vou.

Seo Dico me convida a entrar na casa, entro e cumprimento a esposa dele. Ele me leva por uma escada com o piso emborrachado até o porão. Aperta o interruptor e a luz se ascende. Um quarto baixo de paredes brancas. Em cima de uma escrivaninha de mogno, livros pretos e grandes. São os antigos jornais da cidade, Gazeta de Pirahy e outros.

Algumas estantes com vários objetos antigos, relógios, um óculos de aviador, etc. Uma porta baixa, mas suficientemente alta para que eu consiga passar sem precisar me abaixar. Outro cômodo, com uma escrivaninha com aquelas tampas corrediça. Uma estante forrada de livros, de guerra e vários outros assuntos. Quatro certificados pendurados em molduras na parede, um deles é um Prêmio Nobel.

Uma prateleira com vários enfeites, o que mais me chamou a atenção foi uma caixa com a foto do Sargento da FEB, Max Wolf Filho. Na escrivaninha uma foto de um rapaz jovem. Vários enfeites, um deles escrito em letras corridas “Um enxuviano que lembra de você”, ou algo neste sentido, não me lembro exatamente da frase. Tem também, em outra mesa, um computador antigo, branco com monitor CRT. E, em uma mesa de frente com a escrivaninha, coberta por um plástico, uma máquina de escrever. A luz amarela do museu de seo Dico brilha nos vidros das fotografias.

SeoDico, pega duas cadeiras, aponta para uma delas, confirmo com a cabeça e me sento. E ele vai até a estante de livros e pega um sobre a uma história da cidade. Senta na outra cadeira e começa a folhar o livro.

– É complicado procurar, esses não tem índice – diz. Enquanto lê, passa a mão esquerda por cima do livro para ir orientando a leitura. Folheia para frente e para trás. Mas não encontra nada. Volta a estante e me pergunta se eu vi a conversa e a polêmica sobre o “Minha Luta” que foi publicado este ano. Respondo que sim, seoDico pega o livro, com uma capa laranjada e preta, e diz “olha, eles dizem que não tinha aqui, mas eu tenho o de 87”, coloca o livro no lugar.

Abaixa-se e passa a mão pelos livros de Túlio Vargas. Pega o “O Tempo de meu Pai”, procura da mesma maneira, mas este tem índice. Em meio ao livro vários papéis marcando alguma coisa. Enquanto vê o motivo de um papel colocado no livro, seo Dico me conta que têm quase todos os jornais da cidade. Só falta um, o “La Peruza”, que era escrito a mão. Um papel de marcação está onde conta a história do jornal, o nome “La Peruza” está sublinhado com caneta azul.

Esta nomenclatura, conta no livro, era de uma época onde era moda usar o francês. Enquanto seoDico procura pelos integralistas nas folhas antigas do livro, eu fico olhando em volta. Após um tempo procurando, ele me pede pra ajudar procurar na estante de livros militares, eu vou passando os olhos por todos, tem do Mascarenha de Moraes, e muitos outros.

Um dos diplomas na parede é da Associação dos Veteranos da FAB (AVFAB). Após alguns minutos olhando a decoração e enquanto seo Dico pesquisa no livro, eu pergunto a ele se o diploma foi do pai dele. Ele responde que não, é dele mesmo. Pergunto se ele serviu. Responde que não novamente, e completa que “é de um trabalho que eu fiz aí me deram”.

Ele diz que foi da FAB e serviu no Batalhão Suez, uma tropa enviada como Forças de Paz da ONU que ficou de 1957 até o retorno total em 1967; e eu sem saber estava na presença de um veterano! SeoDico serviu na sétima companhia de fronteira, de 1962 até 1963.

Falo à seo Dico que li em um livro que o que se sabia sobre o pré-guerra da FEB tinha mudado um pouco. Ele olha e vai até a cômoda onde os livros pretos e grandes estão empilhados, abre as portas e pega um caixa. A caixa é comprida e tem uma folha branca grudada escrita em azul “FEB”. Seo Dico abre e de dentro tira relíquias, muitas relíquias históricas. Um quadrinho chamado “O rei do estilhaço”, que conta a história do expedicionário piraiense Tertuliano Pinto Ribeiro.

Também um certificado de veterano com o nome de “Luís Sokolowski”. Várias fotos e dois mapas de artilharia. Um deles em um ponto do mapa tem marcação de onde – provavelmente – foi um ataque.Depois de me mostrar esses tesouros febianos, seo Dico pede desculpas “mas não tem nada sobre integralismo”, antes, e enquanto pesquisava, já tinha contado que não tinha interesse nesse assunto.

Contou também que um dentista da cidade era camisa verde, mas em uma eleição ganhou apenas um voto, nem a esposa votou nele. Eu pergunto se posso escrever sobre ele, ele diz que sim. Pergunto se ele pode me contar da época que ele serviu na ONU, ele responde que sim novamente.

Seo Dico vai até um armário chaveado, abre e pega dois álbuns grandes de fotografias. Ao abrir o álbum ele me pergunta se conheço Carlos Lamarca, respondo que sim. Ele olha para a foto e diz “o Lamarca foi meu companheiro de Suez e meu companheiro de viagem!”.

Conta como a ONU dava um living pass onde o soldado podia viajar. Seo Dico, diz que eles tinham um grupo de viagens e sempre iam juntos. “Fomos para o Iraque, vamos pra Síria, vamos para o Cairo”. Mostrou várias fotos das viagens que fez entre 62 e 63. As sete colunas de júpiter em Baalbek, no Líbano – onde só tem seis, e com disse “mas são as sete colunas de Júpiter!”.

Mostrou também fotos das várias homenagens da FEB e do Batalhão Suez que participou. Homenagem à FEB seo Dico também prestou, fez um monumento único no Brasil, onde tinham placas da Guerra do Paraguai, da Primeira Guerra Mundial, da Segunda Guerra Mundial – onde a FEB foi criada – e do Batalhão Suez.

Continua mostrando fotos e contando as histórias. Uma das fotografias mostra os soldados que tinham acabado de chegar e iam descendo com os sacos de campanha nas costas, assim cruzavam com os que estavam indo pegar o trem para voltar para casa, os uniformes verde escuro e as boinas azuis se destacam.

Seo Dico diz que aquela era “uma história interessante”, conta que eram os que estavam chegando e os que estavam voltando, e no meio da muvuca militarmente organizada um soldado chegou e disse a ele:

– Vvocê fica responsável pela Faiza! Olha cuida da Faiza, não vai esquecer” – e depois seguiu caminho até o trem. Seo Dico estranhou, mas como estava cansado da viagem e com fome foi comer. Comeu, tomou água, aí perguntou para um soldado o que era Faiza, pois disseram a ele que ele era “responsável pela Faiza”.

Falaram pra ele ir até a cerca do quartel e gritar Faiza. Seo Dico foi e gritou. Uma menina palestina de uns seis anos apareceu, ela era Faiza e a partir de agora era sua responsabilidade. O jovem Dico que tinha o nome de “Filho” na guerra comia o rancho e pegava mais uma vez comida, água e levava até a cerca para Faiza.

Após contar a sua história no Batalhão Suez, explica que ficava estacionado na cidade de Rafah, uma das campanhas brasileiras não muito lembradas pela maioria. Seo Dico tinha dezenove anos quando foi. Teve sorte, pois foi para ser soldado de guerra, mas trabalhou num escritório. Conseguiu esse trabalho, pois um amigo do quartel do Rio de Janeiro que trabalhava como oficial de moto-mecanização só conseguiu um cargo de burocrata, mas como não sabia mexer com máquinas, deu um jeito de fazer seo Dico – que sabia usar máquinas e escrever muito bem – trabalhar com ele. Seo Dico escrevia e o amigo assinava.

Depois que terminou de contar o pouco que deu e estávamos nos preparando para subir, seo Dico aponta para um livro e me pergunta se já li. Olho e é um livro verde, com letras amarelas garrafais que dizem: “O feitiço do Congo”. Digo o nome do livro e ele responde “O feitiço existe!” e empurra o livro para trás, uma porta secreta atrás da estante se abre. A porta é um quadrado baixinho, tenho que me abaixar para entrar e dentro mais relíquias históricas. Um projetor de cinema muito antigo, várias máquinas fotográficas antigas. Máquinas de escrever antigas, inclusive uma dobrável de viagem. Dois capacetes que usou no Suez, o azul e o verde de combate e muitos outros artefatos da história.

Quando estávamos indo embora ele com um sorriso pergunta:

-Você nem reparou, mas está na presença de um ganhador do Nobel?

Respondo que tinha reparado nisso, tinha visto o quadro com o diploma. Ele conta que foi receber o prêmio que foi dado em 1988 às Forças de Paz da ONU, e no Brasil para o Batalhão Suez que fez parte dessa história.

Seo Dico voltou em 1963 para o Brasil. Servia no Rio de Janeiro em 1961, foi com o Batalhão Suez em 1962 e lá ficou até 1963. Depois que voltou deu baixa por causa de 1964 (época do Golpe). Seu nome completo é Ricardo Martins Szesz Filho, vive em Piraí do Sul. Seo Dico, ou só Dico como é conhecido, é uma memória viva da história piraiense. Não é a toa que o museu de Piraí tem seu nome. Em um lugar pequeno ainda existem pessoas que pensam e guardam a história de seu povo.

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