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Transcendental

Texto: João Filho, Marina Machado e Mariana Soek

Fotos: João Filho

Ainda há preconceito na sociedade
Ainda há preconceito na sociedade

Em uma reflexão sobre a vida em formato de canção, Gonzaguinha disse preferir “a pureza da resposta das crianças”. Pudera, afinal dificilmente veremos maldade em meio aos pequenos. Brincam, correm, brigam, fazem as pazes. Naturalmente se percebem como menino ou menina e de maneira orgânica começam a se organizar, despertar interesses.

Em alguns casos, o fluxo tido como “natural” continua sem grandes problemas, porém, algumas crianças, ainda neste período tão puro e inocente começam a perceber que existe algo errado consigo. Sentem-se diferentes dos que deveriam ser semelhantes, percebem interesses não aceitos, imposições de roupas e comportamento.

Em meio a essa confusão, o amadurecimento chega e junto com ele uma tortura inimaginável, ao se olhar no espelho e não se reconhecer, não conseguir compreender o porquê de tudo aquilo que é tão natural, porém abominado pelos outros. Pelos nascendo onde não deveriam, genitais inadequados, nojo, desespero, vontade de morrer, em muitos casos.

IMG_8397Parece uma realidade muito distante da maioria das pessoas, mas retrata, de maneira ainda muito superficial, a história de transexuais que vivem um conflito incompreendido e abominado por grande parte da sociedade.

Transexuais que, apesar de tantas vezes, serem marginalizados, não são apenas estatísticas (muitas vezes de morte). São pessoas que têm nome, sonhos, dores, alegrias, mas, acima de tudo, histórias de resistência e superação.

Muito além do gênero ou na orientação sexual. Estamos falando de seres humanos como Elena, Rubens e Jennifer, que resolveram soltar um grito que ainda estava preso na garganta e dizer, outra vez, quem realmente são.

Nós ouvimos calados, por vezes segurando o choro, sentindo na pele e no coração as histórias que contamos a seguir.

Meu nome é força

IMG_8379Elena Nunes dos Santos, hoje universitária, guarda vivos na memória flashes da sua vida. Uns bons, outros ruins. Um deles é a lembrança de quando brincava com sua irmã mais velha de boneca, de passar maquiagem, se vestir como uma mulher. Coisa normal de menina. “Eu fazia com toalha meu cabelo comprido”, conta. Porém, um dia o pai delas descobriu a brincadeira das irmãs e brigou muito com elas, principalmente com Elena. Isto porque, apesar de tudo aquilo parecer muito natural para ela, Elena nascera no corpo de um menino. “Meu pai me xingou muito, me bateu”, lembra.

Depois deste episódio, o reconhecimento do próprio corpo e da própria identidade, que já é complicado para uma criança que se identifica com o gênero com o qual nasceu (cisgênero), foi ainda mais conturbado para Elena (transgênero). Com o passar do tempo, ainda na infância, ela foi percebendo que era um pouco diferente, que seu corpo não correspondia, exatamente, com quem ela era. O primeiro momento marcante de descoberta foi quando sua irmã mais nova, Bruna, nasceu. Foi a primeira vez que ela teve a certeza de que era Elena. “Quando nasceu minha irmã mais nova, a Bruna, eu vi que eu realmente era menina. Eu vi que eu era, mesmo, Elena, e não o filho da minha mãe”, recorda.

Ela lembra que a família sempre foi um pouco fria. Não havia muita proximidade e diálogo com seus pais. No período da infância, seu pai e sua mãe ainda eram casados. As lembranças que Elena tem deste período são de certo desprezo. A visão conservadora familiar distanciava Elena de seus parentes, tanto maternos, quanto paternos. Talvez seja herança do conservadorismo da cidade pequena onde ela nasceu e se criou. Elena e sua família são de Piraí do Sul, cidade do interior do Paraná.

A princípio, o pai e a mãe de Elena achavam que ela era um menino gay e num primeiro momento, seu pai culpou as amizades por isso. Quanto tinha sete anos, a maior parte das suas amizades era com meninas, porém havia um dos seus amigos do bairro que era homossexual. Para o pai de Elena, esse era o motivo da sua mudança de comportamento, chegando a proibir que a filha brincasse com seu amigo. “Ele era meu vizinho e eu ia escondido à casa dele. A gente jogava bola, ia ao rio, fazia coisa de criança, mas meu pai achava que não era certo por ele ser gay”, comenta.

Na infância, o preconceito e a intolerância não ficavam restritos à sua família. Na escola, os apelidos faziam parte da sua rotina. “Meus amigos me chamavam de florzinha, princesa, viadinho”, desabafa.

Há sete anos os pais de Elena não são mais casados, porém, antes da separação definitiva, houve três crises anteriores. Elena conta que o contexto familiar era de muita briga e, em uma destas brigas num período de separação, os pais começaram a xingá-la, e ela, com 12 anos na época, decidiu contar que gostava de um menino e que aquilo não era errado para ela, era natural. “Eles começaram a falar de mim, me xingar, e eu falei que gostava de um menino, que eu não tinha culpa”, recorda.

Depois de contar sobre seu interesse por meninos, o pai de Elena ficou uma semana sem falar com ela e sua mãe, três dias sem olhar no rosto da filha. Era a primeira vez que Elena falava sobre o assunto abertamente com a família. “Meu pai me xingou, disse que eu estava com problema psicológico, que tinha que fazer tratamento, porque aquilo não era normal”.

Desde sempre Elena percebia que era diferente dos amigos e o Ensino Médio fez isso ecoar dentro dela. Aos 15 anos, além de assumir a transexualidade para sua mãe, resolveu tomar hormônios por conta própria. Esta decisão era mais uma variável na equação tão complexa do amadurecimento que acontecia na adolescência.

A realidade daquela menina de 15 anos não envolvia apenas a incerteza da aceitação da família ou o medo de tomar hormônios por conta própria. Elena mudara de escola e seu ensino médio foi um choque de realidade com o mundo real. Apesar de ter amigos e amigas que lhe apoiavam, sua adaptação na escola foi muito complicada. “Eu fui proibida de usar o banheiro feminino no ensino médio porque eu não era menina. Durante as aulas de Educação física eu sempre sofria e nos últimos anos, somente, os professores liberaram para eu fazer com as meninas”.

IMG_8371Se, por um lado Elena tinha amigos e amigas que a apoiavam, existiam alunos específicos no colégio, principalmente os mais velhos, que faziam questão de serem maus e agressivos. Como ela havia começado a tomar hormônio, seus seios começaram a marcar na camiseta, mas ela não tinha essa noção. “Os piás começavam a tirar sarro, vinham apertar meu peito e é uma região bem dolorida, além de ser uma invasão no teu corpo”, recorda.

Os apelidos eram frequentes na escola e todos tinham como objetivo inferiorizar Elena. “Eles sempre falavam alguma coisa dizendo que eu tinha o pinto grande, ou algo assim, para afetar, pois sabiam que na pessoa [transexual] é o que ela não quer”. Além de toda a agressão verbal, “ juntavam-se em grupinhos e faziam rodinha no canto da parede e me deixavam encurralada”, lembra Elena.

Toda esta situação fez com que Elena optasse por não sair mais de casa, afinal não encontrava grandes incentivos, inclusive na família, para estudar. O que a dava força eram aqueles que amigos verdadeiros, em sua maioria homossexuais, com os quais estudava. “Eu tive vontade de parar de estudar não só por causa da escola, mas porque não tinha apoio na família também”, conta.

Quando Elena entrou na adolescência e passou a viver no mundo real, com todas as maldades que lhe é peculiar, viveu a experiência mais marcante de violência. Nossa memória é traiçoeira, faz de nós reféns não somente dos momentos bons. As tristezas quase sempre marcam mais que os risos. As dores que os outros não enxergam, os gritos aprisionados, o choro incompreendido, as cicatrizes que não aparecem.

“Em Piraí, eu apanhei de três caras, uma vez, voltando de uma festa. Eu tinha ficado com um menino e ia encontrá-lo em uma rua da cidade para a gente continuar ficando. Eu estava andando pela rua e veio um carro na minha direção e deu luz alta. Quando eu levei a mão no rosto para proteger meus olhos da luz, senti um soco no nariz e me colocaram no carro. Lá tinha três caras, um dirigindo e dois no banco de trás. Eles foram me batendo até uma região de sítios que tem na cidade. A única coisa que consegui proteger, enquanto eles me xingavam e me batiam, foi meu rosto, no canto do banco. Quando a gente chegou nesta região chamada Bom Sucesso, eu caí de cócoras num terreno que era mais baixo. Eles estavam me chutando e eu vi o espaço numa cerca de uma propriedade e vi que conseguiria escapar, se eu me jogasse. Eles me pegaram e começaram me bater às 4h e eu consegui escapar às 7h. Depois de escapar, para que eles não conseguissem me ver, fui pelo meio das propriedades, pulando as cercas, até chegar na casa da amiga da minha irmã, onde a gente ia dormir, às 9h. Levei duas horas andando até chegar lá. Foi bem difícil. Esta foi a vez que mais me machucou, até mais que a escola”, recorda Elena, com olhar distante e marejado.

O maior medo da mãe de Elena se tornava realidade: sua filha marcada pelos socos e pontapés de uma sociedade preconceituosa e intolerante.

“Eu não ia contar para ela, mas acordei no sábado com a ligação de uma amiga minha preocupada com o que tinha acontecido. Eu contei a história para minha amiga e minha mãe ouviu. Quando desliguei o celular, eu ouvi minha mãe falar, da sala, agora você vai contar para mim. Andei até onde ela estava, com um cobertor enrolado nas pernas, para que ela não visse as marcas das cercas de arame farpado e os esfolados da surra que levei. Quando eu sentei no sofá ela pediu para eu tirar o cobertor. Aquele dia foi o que mais me cortou. Ver minha mãe chorar. Foi o dia em que eu fiquei quebrada”, recorda.

Elena não denunciou a agressão na época, pois não reconheceu nenhum agressor e, por sorte, não entrou para as estatísticas nacionais de mortes por transfobia. Segundo Grupo Gay da Bahia (GGB), referência nacional no assunto, a cada 48 horas uma travesti ou mulher transgênero é assassinada no Brasil. Um total de 179 pessoas trans foram assassinadas em 2017, fazendo do país líder mundial em mortes de transgêneros, segundo levantamento feito pela ONG Transgender Europe.

Ironicamente, o Brasil é o país que mais procura por transexuais e travestis no portal RedTube, conhecido por disponibilizar conteúdo pornográfico online. De acordo com levantamento feito pelo próprio portal em 2016, “você tem 89% mais chances de pesquisar sobre transexuais [no RedTube], se vier do Brasil”, afirma texto do relatório da pesquisa.

Neste país tomado pelo preconceito e hipocrisia, Elena conta que sempre se viu como mulher. “Minha mãe conta que já percebia, porque eu usava a roupa que ela me dava, mas quando a gente ia comprar roupas para ela e para minha irmã mais velha, eu queria ajudar a escolher”.

Além do interesse, ela não se reconhecia no corpo que tinha. “No espelho, ela se via com o cabelo maior, o corpo mais modelado, assim como ainda hoje vejo e é muito difícil se ver e não se aceitar”.

Frequentemente, percebemos algo no nosso corpo que não nos agrada. Seja um nariz maior ou menor, a cor dos olhos, seios grandes ou pequenos. Elena, porém, não consegue se ver com o corpo que tem, apesar de ter curvas mais femininas por conta dos hormônios que tomou. “Quando vou tomar banho, por exemplo, é uma hora muito difícil, pois eu me vejo como eu não queria”.

IMG_8358Elena conta que logo que conversou com sua mãe, foi um posto de saúde na sua cidade e foi orientada a ir até Ponta Grossa, cidade próxima, para procurar tratamento. “Fui até o Hospital Regional, em Ponta Grossa, conversar com um endocrinologista e ela foi extremamente preconceituosa e disse que não iria me ajudar, porque não era uma coisa natural”, relata.

A partir daí ela iniciou o tratamento hormonal por conta própria, com ajuda de amigas travestis. “Elas me orientaram que poderia tomar um comprimido por dia ou tinha as bombas que elas faziam: tomar em uma pancada só uma cartela de anticoncepcional em comprimido, uma pílula do dia seguinte e uma seringa de anticoncepcional injetável”, explica.

Apesar das ‘bombas’ trazerem um efeito mais rápido, Elena optou por tomar um comprimido por dia. Ela preferiu tomar os comprimidos pela manhã, antes de ir para a escola. “Para mim era como se eu tomasse mais uma dose de mulher para encarar o dia”.

Idade adulta

Já adulta, Elena encontrou uma série de preconceitos na sua cidade com relação a trabalhos, que vão desde negação de emprego, até demissão sem motivo concreto. “Eu mudei meu nome nos documentos há um ano e, antes disso, o principal problema era porque eu não tinha nome ‘de mulher’ nos meus documentos”, conta. Hoje ela trabalha como professora em um programa de educação para jovens de 15 a 22 anos, em Castro – PR, e limpa a casa de uma amiga em Piraí do Sul.

A dificuldade de acesso a acompanhamento, fez com que Elena nunca fizesse tratamento com médicos ou psicólogos. Ela afirma ter medo do efeito de todas estas mudanças a médio e longo prazo, porque enfrentou tudo, basicamente, sozinha. “Eu não sei se tô bem, só sei que eu preciso de ajuda para que lá no futuro não tenha nada que vá me fazer mal”, desabafa.

Talvez por não estar resolvida consigo mesma, Elena nunca namorou, apesar de ter ficado com um homem por mais de um ano. Além disso, ela percebe que, na maioria das vezes os homens se aproximam dela por curiosidade. “Eu não quero me relacionar com alguém para matar uma tara. Além disso, ter uma relação sexual me machuca muito, porque eu vejo quem eu não sou, nua, em frente a outro”, conta Elena, que afirma ter pensado, várias vezes, em tirar a própria vida por conta da sua condição.

Elena afirma que, se pudesse se definir com uma palavra, seria: FORÇA! Hoje, ela espera completar 22 anos de idade, quando, legalmente, é possível dar início ao processo de mudança de sexo no Brasil.

 

Por favor, “me chame de ele”

IMG_8328Aos 12 anos a maioria das crianças está lidando com questões da pré-adolescência, o primeiro beijo, divergências de pensamentos com os colegas, a troca dos brinquedos por outros interesses, mas Rubens Gonçalves, hoje com 19 anos e calouro de Educação Física, aos 12 anos lidava com um problema bem maior, um problema de alma e de auto reconhecimento. Nessa época, o rapaz se definiu como lésbica, pois, segundo ele, não se era falado em homem trans e por isso, ele não tinha uma representatividade. Apesar dessa definição, Rubens ainda não conseguia se sentir representado pelo termo, para ele faltava algo.

Para ele, o termo lésbica dizia muito mais sobre o sentido sexual, mulher que sente atração por outra mulher, do que o que ele realmente sentia, ele queria muitas outras mudanças que não faziam parte do lesbianismo.

Entre 15 e 16 anos, Rubens assistiu a uma entrevista na TV cujo entrevistado era um homem trans, o primeiro do Brasil. Durante a entrevista, o homem revelou informações sobre sua transição, a cirurgia, falou também sobre seu nome de registro. Nesse momento, respirou aliviado, pois soube que de alguma forma poderia ser por fora quem ele verdadeiramente era.

Rubens conta que dos 12 aos 16 anos passou por psicólogos regularmente, sua mãe achava que ele tinha problemas por conta das reclamações em relação às roupas que usava, ao cabelo, a sua voz. Sua mãe não sabia o que fazer, como ajudar, e o menino também estava perdido em sua própria cabeça e confusão.

Mas, segundo ele, a psicóloga também não o entendia. Rubens diz que acabou ele mesmo se compreendendo. Durante o processo de transição, afirma que um dos maiores problemas foi a falta de profissionais especializados em transexualidade.

No primeiro momento, Rubens pesquisou por conta sobre o tratamento hormonal, não sabia como contar sua mãe e nem achava que ela entenderia. Então, sua alternativa foi fazer o tratamento por conta própria, de forma clandestina. Ele usou como exemplo a personagem de uma novela, diz que ele teve o mesmo processo de tratamento que a personagem.

“Eu comprava por fora e aplicava escondido, apliquei testosterona por dois ou três anos e minha família nunca me questionou. Meu corpo mudava, pelos cresciam no meu rosto e ninguém nunca me perguntou e eu nunca falei”, disse.

IMG_8322Rubens é órfão de pai e sua mãe, apesar de levar um bom tempo para compreender o filho, o aceitou. Sua maior dificuldade, até hoje, é com os irmãos. Ele explica que na escola não sofreu tantos preconceitos, infelizmente, não pode dizer o mesmo da graduação. Quando questionado dos preconceitos e agressões sofridas na rua ou em ambientes públicos, diz que felizmente não viveu isso e explicou o porquê.

Segundo Rubens, a vivência de uma mulher trans é bem mais difícil que a de homens trans. Essa dificuldade se mostra na transição, considerando que os hormônios usados pelas mulheres trans são muito mais fortes, isso é um dos maiores fatores com que fazem que a aparência da mulher trans seja mais marcante e perceptível, por isso, o preconceito absurdo. “A sociedade é muito machista”, diz, ressaltando que a sociedade aceita melhor se você deixar de ser mulher, para ser homem. Mas se você nasceu com o privilégio de ser homem e quer virar mulher, o preconceito e violência são muito mais frequentes.

O menino que ainda não fez a cirurgia, guarda o dinheiro e espera ansiosamente pela sua vez, para que, finalmente, ele seja de corpo e alma quem ele quer ser. Hoje, Rubens sorri, mas já se trancou no quarto, já desejou a morte e até tentou adiantá-la.

Eu nasci assim

Para a ciência, ainda não há um consenso sobre o porquê um transgênero nasce nesta condição. Há comprovação, entretanto, que a identidade de gênero é formada depois do desenvolvimento do sexo do bebê em gestação. “A genitália se desenvolve para um lado e o cérebro para o outro. Isso vai se dar por influência de alguns hormônios e algumas substâncias que podem estar circulando pela placenta e pelo cordão umbilical”, explica Alexandre Saadeh, psiquiatra do HC-USP, em entrevista ao G1 Globo Repórter.

Ainda há preconceito na sociedade
Ainda há preconceito na sociedade

Durante o período de formação percebe-se, então, uma incompatibilidade de condição cerebral com a genitália. “Esse cérebro feminino numa genitália masculina, ou ao contrário, cérebro masculino numa genitália feminina, pode explicar a questão da transexualidade”, complementa o psiquiatra.

Esta hipótese pode explicar diversos casos de transexualidade, como o de Jennifer Nogueira (22), acadêmica de Letras da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).

A universitária, que hoje mora com algumas amigas em Ponta Grossa – PR, afirma que nasceu com a “genética transgênero”. Inclusive, durante toda a gravidez de sua mãe, o médico afirmou que ela era uma menina. A surpresa veio no parto, quando Jennifer nasceu com seu órgão sexual masculino.

Contudo, Jennifer sempre se enxergou como menina, nunca se encaixou em nenhum papel masculino. Com 15 anos começou sua terapia hormonal escondido dos pais, pois, nessa época, eles ainda não à aceitavam como uma menina. Durante esse processo, ela sofreu bastante, passou mal com as cargas hormonais, mas não podia frequentar um médico, já que estava se medicando por conta própria. E após vários episódios de mal-estar, resolveu interromper a prática da automedicação.

A partir dos 18 anos, quando atingiu a maior idade, Jennifer partiu para o processo da troca de guarda roupas, aceitação da família, substituição fictícia de nome, e também retomou sua terapia hormonal com os devidos acompanhamentos médicos.

Conforme foi ocorrendo a evolução de Jennifer para dentro desse novo velho universo, ela começou a se deparar com a vulgarização que existe sobre a questão de gênero. Primeiro que a sociedade erra gritantemente quando usa o termo “mudança de sexo”, ouvimos muito esse termo na mídia. Mas a verdade, é que ninguém muda de sexo. As pessoas já nascem com determinada identidade. Depois vem a questão de tratar do assunto com leviandade. Ou seja, acreditar e/ou confundir que transgêneros são basicamente travestis, navegados na vida da prostituição. Embora a prostituição também seja uma escolha independente, o assunto não tem nada a ver com isso.

Jennifer contou que durante o processo de transição estética, era confundida pelos amigos e família com uma pessoa gay. “Eu olhava para meus amigos gays e falava que eu não era como eles, não gostava do tipo de meninos que eles gostavam, e sim, que gostava do tipo de meninos que minhas amigas gostavam”, relatou.

O pai de Jennifer, em particular, até hoje, diz que a filha tem mais o respeito dele, do que a aceitação propriamente dita, uma vez que lá no início da sua transição, ele tinha o mesmo senso comum que os outros, que teria um filho homem, travesti, que se corromperia para a prostituição. “Ele pensava que eu seria um macho com cara de mulher, mas quando percebeu a mulher linda que me tornei, e que iniciei uma graduação, aos poucos ele foi me enxergando de um jeito diferente”, conta Jennifer.

Quando questionada sobre o preconceito do lado de fora da bolha familiar, ela dissertou um pouco sobre uma sociedade vazia e desinformada. “O preconceito foi muito grande, as pessoas tomam como verdade para si, o que idealizam sobre você. Se você tem cara de homem, te julgam como homem, se tem cara de mulher, te julgam como mulher. ”

O começo da transição é muito complicado, pois os(as) trans têm aquele papel andrógeno, as pessoas não sabem ao certo como tratar. Sofrem o preconceito tanto na área pessoal como profissional. As pessoas não dão oportunidades, trabalho. “Elas olham para você, e você tem cara de quê? Tem cara de nada”, lamentou Jennifer. Depois da finalizada a transição, as coisas começam a ficar mais maleáveis. No caso dela, nesse momento, já tinha se tornado uma mulher por completo.

Jennifer ressalta que atualmente sofre mais o preconceito na área de relacionamentos por conta do machismo, afinal, geralmente quando fica com homens e logo após revela que é uma transexual, eles ligeiramente se esquivam.

IMG_8345Com relação a cirurgia para troca de órgão sexual, Jennifer aconselha por experiência própria que primeiramente é preciso entender se isso é verdadeiramente uma necessidade, já que não é o órgão sexual que caracteriza a sua feminilidade ou masculinidade.

Após essa mesma reflexão, Jennifer acabou optando pela cirurgia. Há um ano e meio atrás, conseguiu efetuar todo o processo pelo SUS, disse que foi atendida de forma exímia e que agora só precisa fazer mais um procedimento cirúrgico para correções estéticas. Quanto à mudança oficial de nome, ainda está em processo judicial para conseguir, está passando por toda a burocracia e protocolo.

Com todas essas informações, é preciso começar a raciocinar puramente sobre a questão de gênero. Então, entender que isso vai muito além do que simplesmente marcar um “X” em todos os questionários onde as opções são somente Homem ou Mulher. Porque a questão nunca é: Qual é o nosso gênero?

É preciso entender que nosso sexo não denomina nossa identidade em essência. Esta é caracterizada a partir de nossas experiências humanas. É preciso ter a consciência de que a questão de gênero tem de ser abordada e entendida. Não pode ser impedida de existir. O mundo está em constante evolução. E quem não acompanhar e não usufruir e ou participar ativamente dessas evoluções, ficará para trás.

E Jennifer está inteiramente de mãos dadas com essa incrível evolução. Sonha em terminar sua graduação, trabalhar com licenciatura, viajar bastante e aproveitar a vida. A vida que ela mesma escolheu para si. Uma vida altruísta, que por inúmeras vezes tentou impor as mais variadas condições a Jennifer. Mas ela não recuou e hoje degusta eximiamente de todos os prazeres de sua liberdade de gênero, liberdade de ser.

E além de todos os pontos de sua personalidade autêntica, se considera uma trans feminista, 100% defensora dos direitos das mulheres, e finaliza dizendo que “vai contra todas as regras da minha existência, ser conivente a uma sociedade opressora. ”

A firmeza de personalidade quase sempre acompanha transexuais. É uma espécie de escudo contra uma sociedade que persegue, odeia e não sabe o que é empatia. A mesma sociedade preconceituosa que enxerga os transexuais como as “sapatões” ou os “travecos”.

Esta realidade de desconhecimento está presente, inclusive, no meio daqueles que deveriam ser formados e preparados para trabalhar com essas questões. Apesar de buscarmos vários profissionais em Ponta Grossa, nenhum dos procurados quis falar sobre o assunto. Alguns disseram não estar preparados para tal, outros, simplesmente, não nos responderam.

 

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